quarta-feira, 6 de julho de 2011

O Conjunto de Fornos de Cal de Pataias

             A indústria artesanal da cal nos antigos Coutos de Alcobaça concentrava-se na beirada da Serra dos Candeeiros. É neste espaço que, no século XVIII, encontramos a maioria das referências aos fornos do Mosteiro.
            Por meados do século XIX, a falta de matos utilizados como combustível na cozedura da pedra, levou ao encerramento dos fornos de cal parda ou magra da charneca serrana, propiciando a transferência desta actividade para Pataias.
A colonização do espaço, incentivado pela plantação de vastas áreas de olival nas faldas desta Serra, ao longo do século XVIII, conduziu a arroteias extensivas da mata primitiva. Também a vaga de tomadias populares verificadas nas terras da encosta, durante o século XIX e a primeira metade do século XX, estacando tanchoeiras entre as penas e fragas, contribuíram para a supressão do coberto vegetal de carvalhos, carrascos e medronheiros... Aliás, o cronista do Mosteiro, Frei Manuel de Figueiredo (século XVIII), já alertava para o prejuízo que a ocupação excessiva do solo acabava por trazer à agricultura, ao escassearem terras de pasto e matos. De facto, a  acção combinada da pastorícia e do corte de matos para a arte agrícola e combustível condenaram a sobrevivência deste ofício neste espaço geográfico.
Segundo os registos de contribuição industrial de 1881, Pataias era o único centro de produção de cal do Concelho, com treze fornos em funcionamento. Esta localidade possui veios de pedra de excelente qualidade, matos em abundância nas terras de pinhal, factores que não só justificam a instalação da indústria, como explicam o seu desenvolvimento ao longo das primeiras três décadas do século XX. A passagem do caminho-de-ferro (linha do Oeste) em Pataias, no ano de 1888, e a posterior construção do apeadeiro contribuíram para a expansão desta actividade. Era este transporte que assegurava o abastecimento de cal à Siderurgia Nacional, indispensável na produção do aço.
 Em 1933 estão arrolados 33 fornos em actividade. O número de fornos em laboração veio gradualmente diminuir. Em 1942 encontramos 25 fornos, oito anos volvidos apenas 17 mantêm este ofício tradicional. Já no ano de 1982 só 5 fornos ainda trabalham, chegando o seu ocaso no ano de 1995, quando o senhor António Grilo coze a última fornada. As famílias que ao longo de mais de um século tomaram nas suas mãos este ofício sazonal foram forçadas, paulatinamente, a largar este mester.
Muitas são as explicações para o abandono desta arte milenar. Em primeiro lugar, o carácter artesanal deste ofício que pouco ou nada se modernizou. Por outro lado, a falta de mão-de-obra (este ofício beneficiava da força de trabalho das proles numerosas, assim como de alguns tempos mortos do calendário agrícola), motivada pela instalação das indústrias cimenteiras, vidreiras e cerâmicas na região, que permitiram um pleno emprego e estimularam a deslocação de activos da agricultura para a indústria. A dureza das condições de trabalho (18 horas seguidas a alimentar o forno com 6 magras horas de descanso num canto do barracão) não constituía aliciante para os mais novos. As exigências de jornas mais elevadas vieram a tornar-se verdadeiramente incompatíveis com a capacidade produtiva e a rentabilidade das fornadas. Por outro lado, as empresas que adquiriam grandes proporções de cal, passaram a instalar fornos eléctricos destinados à sua produção.
Actualmente sobrevivem no seio do parque florestal 29 fornos de cal desactivados, conjunto que, pelo bom estado geral de conservação, merecia uma rápida intervenção que dignificasse e preservasse este espaço de produção e memória.
Com o encerramento dos fornos, a regular limpeza dos pinhais deixou de ser feita, pelo que o culminar desta actividade teve um impacto negativo nas culturas florestais e sua exploração pela mais fácil propagação de fogos.

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A tecnologia de produção da cal não terá conhecido grandes modificações do período romano aos nossos dias.
Estes fornos de estrutura barriloíde arvoravam as suas paredes com tijolos ligados por um barro areento. O seu topo aberto apresenta-se ligeiramente estrangulado em relação à base afundada no terreno. A altura destes fornos situa-se entre os 4,5 m e os 6m, a largura da base entre os 3,70 m e os 4,60 m e o topo entre 3,15m e 4,10 m. Para resistir à pressão da cozedura os fornos apresentam-se parcialmente aterrados. Com esta mesma finalidade a parede é travada por cima do portal com três troncos de pinheiro.
A laboração destes fornos é de tipo descontínuo ou intermitente, necessitando de um abastecimento regular de mato à caldeira até finalizar a cozedura, ao contrário do que sucede nos fornos de laboração contínua ou permanente em que as camadas de lenha ou carvão alternam com as camadas de pedra. Como combustível utilizava-se preferencialmente o mato, daí denominarem estes fornos de fornos “de cal a mato”. Para uma fornada eram necessários entre 80 a 100 carradas de mato. Com a adaptação aos carros de bois de eixos de ferro e rodados de camioneta, por volta dos anos 50, reduziram-se os fretes a 50 ou 60 carradas. Os carros podiam agora vir mais carregados sem o risco de se atolarem nas areias do pinhal. Com a substituição da tracção animal pela tracção mecânica, apenas 10 fretes de camioneta eram suficientes.
A partir da década de 40 recorre-se, igualmente, ao “motano” (molhos de braça de pinho). Graças ao “motano” os fornos começaram a laborar durante o Inverno. Cada fornada consumia entre 150 a 200 talhas de “motano”, equivalendo 1 talha a 60 molhos. Posteriormente utiliza-se a serradura e mesmo pneus velhos para alimentar a caldeira. A temperatura em que se processava a cozedura da pedra é denominada de rubro cerejo, situando-se entre os 800º e os 1000º.
O “empedre” do forno consumia aproximadamente 150 carradas de pedra, extraída pelos cabouqueiros. Os fornos, por uma questão de economia, localizam-se nas imediações das áreas de extracção. Cada fornada levava em média três semanas. Uma para enfornar (levantar o “empedre”), outra para cozer a pedra e outra para a retirar.
Principiava-se pelo “empedre”, assentando as “armadeiras” sobre o peal que rodeava a caldeira. Quando o “empedre” atingia a altura do portal as pedras começavam a ser descarregadas pela abertura superior. Sobre as “armadeiras”  (pedras que chegavam a atingir 1 m de comprimento) destinadas a estruturar a abóbada, depositavam-se as “carregadouras” (pedra miúda). O “capelo”, final do “empedre”, excedia em cerca de 1,50 m o topo do forno.
A combustão rápida do mato exigia ao forneiro carregar constantemente a caldeira por intermédio da boca do forno. Quando a cinza se acumulava, tornando o fogo mortiço, o forneiro, com o “varredoiro” (pinheiro) ao ombro, remexia o brasido. Com outro pinheiro de menor porte, o “acabador”, retirava-se a cinza que se acumulava nos cantos. Finda esta tarefa, que durava cerca de meia-hora, podia-se, novamente, alimentar a fornalha, impedindo assim que a pedra pudesse encruar. A utilização de compressores prescindiu deste esgotante trabalho.
No final da cozedura, o “capelo” do “empedre” baixava cerca de meio-metro em relação ao topo do forno. Como nos refere o mestre Joaquim Ribeiro bastava olhar para a pedra para saber se ela estava convenientemente cozida. Era então chegada a altura de desenfornar a pedra, tarefa árdua dada a temperatura que o forno mantinha. Em média cada fornada rendia entre 50 a 55 toneladas de cal. Sabemos que antes da utilização do “motano” como combustível e do recurso ao transporte mecanizado das paveias de mato e da pedra das caboucas, os fornos não coziam mais do que três a quatro fornadas por ano, passando, posteriormente, a poder realizar mais de dez fornadas.
A cal era comercializada à boca do forno. Caso os compradores tardassem a pedra consumia-se, pois não existia nenhum espaço destinado ao armazenamento. Só a partir da década de 50 é que se edificam armazéns para guardar a cal, acondicionando-se esta em tulhas de tijolo, com uma capacidade de cerca três toneladas. Inicialmente em galeras, nos seirões e cangalhas dos burros e, mais tarde,  nas camionetas escoava-se a cal em pedra e em pó.
Nas feiras e nos mercados a vendedeira da cal marcava sempre presença. No tempo da Páscoa o costume de caiar a habitação e alguns cómodos (adega, casa das tulhas e pias, cisterna...) antes da visita do pároco, levava a um aumento da procura e logo à subida do preço deste produto. Este uso não tinha apenas um objectivo estético, cabendo à cal assegurar a impermeabilização dos imóveis, assim como os resguardar dos calores estivais. Ao matar a cal na pia acrescentava-se um fio de azeite, o que impedia não só que a cal sujasse os fatos domingueiros, como ajudava a conservar melhor as paredes.
A cal gorda de Pataias era procurada para o fabrico de argamassas, estuques, cal de caiar e para uma ampla utilização nas terras de cultura.

Texto: António Valério Maduro
Fotografias: Mariana Coutinho - 9º E

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